A ciência é (quase) cega - e nós também

Hoje quero falar de ciência, mas não só dela. Vamos começar com uma pergunta simples. Qual dos desenhos abaixo melhor reproduz a forma da órbita da Terra ao redor do Sol?

Private Universe

Moleza, não? Na minha escola me ensinaram que a órbita da Terra é bem elíptica, e acredito que na sua você também aprendeu isso. Então já podemos eliminar as opções A e B. Lembro de um trabalho que minha professora de ciências passou para a turma: tínhamos que comprar bolas de isopor de tamanhos diferentes para representar os planetas, e cada um deles possuía órbita bem achatada. O Sol ficava no centro do Sistema Solar, o que me remete à figura C. Mas e as estações do ano? Não é que a Terra está mais perto do Sol no verão e mais longe no inverno? Ora, então deve ser a figura D.

Nada disso: a opção mais correta é a letra A. Ao contrário do que a gente aprendeu, a órbita da Terra não é tão achatada. Aliás, é quase um círculo perfeito. A Terra permanece a uma média de 150 milhões de km do Sol durante o ano, com pequenas variações. E o que causa as estações não é a distância entre a Terra e o Sol, mas a inclinação do eixo da Terra (23,5 graus).

Verdade: o ângulo com que os raios solares incidem na Terra afeta a temperatura. Durante o verão, o Sol está alto no céu e o ângulo dos raios solares é quase perpendicular à superfície do planeta, deixando a energia mais concentrada. Por outro lado, quando o Sol está mais baixo no céu, os raios incidem num ângulo mais agudo e se dispersam na superfície. Cada pedacinho de terra recebe menos calor – e assim estou eu agora batendo queixo no inverno (veja desenho abaixo). O tempo também é mais quente no verão porque o Sol, ao estar mais alto, fornece mais horas de luz por dia.

Private Universe

Não foi só a minha escola que ensinou errado. No famoso documentário Private Universe, de 1988, a pergunta "por que é mais quente no verão que no inverno?" foi feita a 23 professores e alunos de física da Universidade de Harvard. Com exceção de 2, todos eles responderam que é porque a Terra está mais próxima do Sol no verão. Uma explicação que continua firme e forte até hoje.

Usei esse exemplo para mostrar que carregamos uma porção de ideias erradas sobre muitas coisas, inclusive as que parecem banais – como as estações do ano. Uma vez que elas se instalam no nosso cérebro, é muito difícil mudá-las. Como diz o personagem de Leonardo DiCaprio no filme "Inception", essas ideias são mais resilientes que vírus e bactérias. Não vão embora, mesmo quando confrontadas com fatos como esses aí de cima.

Se duvida de tudo o que eu disse, não se afobe. Você não é o único.

Meu erro

Semanas atrás, eu tentei explicar a causa das estações do ano a um engenheiro amigo meu, mas não adiantou. A primeira reação dele foi: quem te disse isso? Por mais que eu insistisse, ele continuava duvidando da "minha tese". Até aceitou que o ângulo da Terra era importante, mas incorporou-o à sua velha crença na distância: para ele, quando um hemisfério está mais perto do Sol é verão, quando está mais longe é inverno.

Bobagem: como explica o projeto Private Universe, a Terra é tão pequena e distante em relação ao Sol que a diferença da distância entre os hemisférios é praticamente desprezível. O planeta está inclusive um pouquinho mais perto do Sol quando é inverno no Hemisfério norte. (Se quiser mais detalhes, visite o site do projeto. Se for professor, vale a pena discuti-lo com seus alunos.)

Portanto, meu erro foi tentar convencer meu amigo dessa nova ideia, indo contra tudo o que ele ouvira desde pequeno – inclusive na faculdade de Engenharia. (Será mesmo que agi errado?) Meu amigo então ligou para um físico que conhece. O físico também contestou "minha tese" e repetiu a velha fórmula que aprendera nos livros didáticos: a causa das estações do ano é a distância entre a Terra e o o Sol. Me dei por vencido. Assim como o engenheiro, o físico também não arredava o pé dessa ideia.

O cientista que estuda cientistas

Esse é o ponto aonde eu queria chegar. Os cientistas vivem rejeitando fatos que não se encaixam na tese deles. (Eu disse cientistas, não religiosos ou jornalistas!) Quanto mais comprometidos com a tese, mais chances eles têm de ignorar dados inconsistentes que aparecem nos experimentos. Foi o que o neurocientista Kevin Dunbar constatou ao acompanhar 4 laboratórios de biologia molecular da Universidade de Stanford, o supra-sumo da ciência mundial.

A Superinteressante deste mês traz a entrevista que fiz com o Dunbar, que é professor de psicologia na Universidade de Toronto, no Canadá. Há décadas ele estuda como os cientistas raciocinam na hora de conduzir os experimentos. A conclusão: a maioria ignora achados não previstos na tese inicial, pensando que são erros. E acabam selecionando os dados que confirmam o que eles já acreditavam. (Desde que falei com Dunbar, fico com o pé atrás quando alguém me fala de algo "cientificamente provado"...)

Superinteressante

Em grande parte do tempo no laboratório, diz Dunbar, os cientistas obtêm resultados que não esperavam. Pelo menos 50% dos dados são inconsistentes com sua teoria. Eles encontram uma proteína que “não deveria” estar lá, por exemplo. Sua reação inicial é culpar o método: acham que o dado está errado e que vai desaparecer se mudarem algum detalhe do experimento, como a temperatura. Se o resultado se repete várias vezes, começam a pensar que algo interessante está ocorrendo. No entanto, só uma minoria segue resultados inesperados – que podem levar a uma descoberta.

Essa decisão depende do grau de comprometimento com a teoria. Cientistas altamente comprometidos tendem a ignorar mais dados inconsistentes com ela. Pode ser que nem vejam uma informação que não esperam, o que é um desastre para a ciência. De acordo com Dunbar, a explicação está no cérebro. Há informações demais à nossa volta, e o cérebro precisa filtrá-las. Nesse processo, dados “estranhos” nem serão memorizados. Essa é uma das funções de uma região cerebral chamada córtex pré-frontal dorsolateral: suprimir representações indesejadas.

Para evitar que esses lapsos aconteçam, Dunbar diz que o caminho é tentar mudar as nossas representações. Pensar no problema de outro modo. Veja o caso do Viagra: ele foi inicialmente desenvolvido para problemas do coração. No final dos testes, a droga não melhorou a condição cardíaca dos voluntários, mas eles não quiseram devolvê-la. Por que gostaram tanto? Esse foi um caso de descoberta acidental: os cientistas primeiro acharam que o experimento tinha falhado. Daí prestaram atenção no resultado inesperado – e hoje o Viagra é usado para combater a impotência sexual.

Ok, optar por seguir um dado inconsistente é fácil. Mas o que fazer quando aparecem 50 na frente do cientista?

“Luis Pasteur dizia que a sorte favorece a mente bem preparada”, diz Dunbar. Ou seja: o bom cientista sabe que tipo de dados seguir. Ele dirá: “Hum, isso é interessante, vamos por aqui”. Outros cientistas não mudarão de rumo. Experimentos custam tempo e dinheiro, e eles não vão se arriscar em nome de algo que não conhecem. “Em geral, cientistas precisam decidir entre fazer os experimentos de baixo risco, que garantem emprego e publicações, e os de alto risco, que provavelmente não vão funcionar mas que podem render descobertas”, afirma.

Portanto, segundo Dunbar o sistema científico é parte do problema, pois faz com que os cientistas só se preocupem em publicar. O que importa é o número de publicações. Assim, o que 90% dos cientistas fazem é apenas mudar uma variável de um velho experimento e publicá-lo de novo. Vão mudando detalhes, sem fazer descobertas que realmente contribuam para o conhecimento.

Isaac Newton

Pensamos que o trabalho do cientista é solitário e que a descoberta vem de repente – tal como Isaac Newton descobrindo a gravidade ao ver a maçã cair da árvore. Mas na ciência o raciocínio é feito em conjunto, e a diversidade do grupo é crucial para lidar com dados inesperados. Por isso, Dunbar diz que os encontros informais entre cientistas são fundamentais. É nessas horas que a interação e o raciocínio espontâneo ocorrem livremente. E podem ajudar a pessoa a mudar de ideia sobre um resultado.

"Se o grupo é homogêneo, ter 10 pessoas não é melhor que ter uma, porque todas elas têm a mesma ideia. Não adianta elas terem lido os mesmos livros ou estudado na mesma faculdade. Além disso, é bom ter homens e mulheres na equipe, já que eles não costumam seguir dados inesperados tanto quanto elas", afirma.

Para quem quiser ler os trabalhos do Dunbar, vale uma visita aolaboratório dele. Minha sugestão é o estudo "Do Naïve Theories Ever Go Away?".

POSTADO POR EDUARDO SZKLARZ ÀS 09:23

MARCADORES: CAUSA DAS ESTAÇÕES DO ANO, CIÊNCIA, KEVIN DUNBAR

FONTE:

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